30.4.07

Somos Livres

Ermelinda Duarte



Ouvia-a aqui e roubei-a à má fila. Com oito anos sabia esta canção de cor. e cantei-a (quem não cantou?) durante anos. de tal maneira que no exame final da 4ª classe fiz uma composição sobre uma gaivota. Lembro-me vagamente do conteúdo, sei que o protagonista era uma gaivota-pomba da paz que voava voava e transformava os lugares por onde passava. A composição foi considerada a melhor do distrito no ano de 1975/76. O 25 de Abril tinha sido ontem e, conscientemente ou não, eu apoiava a revolução. ou não fossem sempre as escolas instrumentos políticos do poder vigente. antes tinham servido (ferozmente) a propaganda salazarista.

Éramos livres, ou queríamos ser livres, mas demorámos algum tempo a sê-lo. A liberdade exigiu aprendizagem. Em Outubro de 1974, no início do novo ano lectivo, as reformas estavam ali, visíveis naquela escola. Na sala, as paredes estavam despidas de Salazar e Caetano. Mantinha-se o crucifixo, que ninguém muda a mentalidade de professores com dezenas de anos de carreira de um dia para o outro. O 1° ano tinha pela primeira vez classes mistas, para gáudio dos mais velhos, como eu, que com as colegas de turma inventávamos casamentos entre meninos e meninas de 6 anos. Ainda me lembro do meu casal preferido, a Clarinha e o Nuno (pobres vítimas da Revolução!). Deixou de haver um muro a separar o edifício dos rapazes e o das raparigas e isso era estranhissímo. Nos anos anteriores era expressamente proibido passar o muro para o outro lado, o castigo era grande para quem o fizesse e, de repente, não havia muro, e éramos convidados a usar todo o espaço do recreio. Nunca consegui atravessar o muro que já não existia. Lembro-me perfeitamente de sentir que continuava a infringir qualquer lei. Quando os rapazes passaram a ocupar o "nosso" espaço, não gostei. As brincadeiras deles eram mais violentas. Um dia, uma bola mal lançada atingiu-me no estômago, fiquei sem conseguir respirar por uns momentos; quando recuperei fui ter com o miúdo e ordenei furiosa: "volta para o teu recreio!".

Quando penso na votação do concurso Grandes Portugueses, ou nas manifestações pró-fascistas e xenófobas dos últimos tempos, penso sempre que há gente que ainda não aprendeu o novo espaço de liberdade. Quando se zangam, continuam a gritar: "volta para o teu recreio!"

Não sei é se isso acontece por terem passado 33 anos, ou se acontece por terem passado 33 anos! Viver em liberdade exige aprendizagem, mas também memória.

25.4.07

1974

E então olhei à minha volta
Vi tanta esperança andar à solta
José Mário Branco




O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raíz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro

Ruy Belo

24.4.07

Bee Gees


How Deep is Your Love, 1977

A sola do sapato roto e a mãe. Foram eles os culpados. Ou um maldito orgulho.

Ela escreveu na primeira página do caderno: Pergunta 1 - Como te chamas, Pergunta 2 - Que idade tens, Pergunta 3 - Qual a tua disciplina favorita, Pergunta 4 - O que queres ser quando cresceres, e por aí adiante, com uma dose igual de inocência e de malícia, ou não fosse o único objectivo do inquérito vê-lo responder também às últimas perguntas.
- Pergunta 9 - Gostas de alguém, Pergunta 10 - Descreve-o/a.

A regra era responder primeiro e depois fazer circular o caderno entre os amigos. Todos saberiam que se chamava Ângela, tinha 13 anos, mesmo que faltassem ainda alguns meses, gostava de geografia, queria ser analista, mas não dizia de quê, enfim, agradava-lhe a ideia de trabalhar num laboratório, gostava dos Bee Gees, mais especificamente do Maurice Gibb mas isso ali não dava jeito nenhum dizer porque afinal ele ia ler tudo, e gostava dele, do Alberto do 10° ano que, por agora, para não passar por tontinha, pois uma coisa é provocação e outra é humilhação, ai dele, era apenas simpático. E de repente, antes de ter tempo de recuar na decisão, a Manuela tirou-lhe o caderno e foi a correr entregá-lo ao Ramiro, que foi a correr entregá-lo ao Alberto, e lá estavam os dois, Ângela e Alberto, em pontos separados do polivalente, ela sentada ao pé do bar a fazer de conta que está na maior e ele ao pé do palco, rodeado de amigos, a ler o inquérito.
O toque para as aulas, uma troca de olhares, ela cheia de certezas, ele também gostava dela; ela sabia, por causa daquela maneira que ele tinha de lhe dizer coisas sem usar palavras, e no fim das aulas, o encontro, todos em manada a descer a rua da escola, ele a pegar a mão dela, ela a querer andar mas o corpo todo parado, ele a dizer - Lê!, ela leu, 9 - Ângela, 10 - Muito bonita, e pronto, namoravam, já sabiam os dois, e todos os amigos.

Tinham educação física nos mesmos dias e à mesma hora e combinaram faltar a essa aula para namorar, dizendo namorar a rir mas sem enganar ninguém, muito menos o outro, que ele tinha mais certezas sobre aquele amor dela e ela mais certezas sobre aquele amor dele, do que cada um deles sozinho, sobre o que sentia. Sentavam-se atrás do Pavilhão 2 e conversavam. A Manuela, que entretanto também começara a namorar com o Ramiro, contara-lhe em pormenor o primeiro beijo que tinha dado, na boca, e todos os dias ela esperava a vez dela, a vez dele. À noite, deitada na cama, e a bem dizer, demanhã ao acordar, e até nas aulas, quando se distraía, imaginava todas as formas possíveis do acontecimento. Sem querer esbarravam de frente e não resistiam, ele avisava-a por carta da premência de se beijarem, um dos dois adoecia gravemente e o outro dedicava-se sem limites à tarefa do consolo. Mas quando estavam sozinhos e ele começava a olhar muito sério para os lábios dela, ela virava o rosto, mais encarnada que sei lá o quê, e puxava outro assunto. E os dias foram passando, com as fugas ao sábado para o ir ver jogar andebol, os ensaios do ballet em que ele aparecia e lhe levava o saco até casa, as mãos dadas nos momentos mais íntimos nos tais dias de educação física, muitos mimos e olhares doces, e o desejo de beijos na boca.

Até que. há sempre um até que. até que o professor de ginástica comentou com a tia dela as faltas às aulas e o namorado, a tia comentou com a mãe, e um dia, atrás do Pavilhão 2, apareceu a mãe. Se lhe bateu logo ali ou só em casa, se foi buscar a chibata e a marcou ou se isso foi noutra vez qualquer, são pormenores sem importância. No dia seguinte, ele esperava-a, e ela não queria vê-lo.

Estavam sentados na relva, ela agarrada aos joelhos, o Alberto a espreitar-lhe o rosto escondido pelos cabelos. Ele nunca ia directo ao assunto mas nesse dia quis saber, logo, o que tinha acontecido, qual tinha sido o castigo, se lhe tinham feito mal. Ela choro não choro, mas depois virou-se e disse-lhe que estava tudo bem. Deitou-se e disse-lhe, irritada - nunca me beijaste! Cruzou uma perna sobre a outra e ia distrai-lo com mais qualquer coisa quando o viu olhar para o sapato. Um dos pares dos seus sapatos bordeaux, de camurça, com dois centímetros de tacão, e uma fivela pequenina de lado, tão lindos que os usava todos os dias, tão imprescindíveis que nem queria levá-los ao sapateiro, tinha um buraco na sola.
...


Às segundas, n' O Afinador de Sinos, às terças aqui, os Princípios continuam. O Livro vai-se compondo. Participem!

21.4.07

Orfeu nos Infernos de Jacques Offenbach

Para quem ainda não tiver programa para a tarde de domingo, dia 22 (17h00), e se viver em Aveiro ou a uns escassos quilómetros, deixo uma sugestão: assista à estreia da versão em português da obra Orphée aux enfers, de Offenbach, pela Classe de Canto da Universidade de Aveiro e Orquestra Filarmonia das Beiras. Raquel Camarinha e Alberto Sousa traduziram e a encenação de Carla Lopes é divertidíssima! A direcção musical é de António Vassalo Lourenço. Acabo de chegar do Teatro Aveirense e ainda estou com o Can-Can no ouvido!

No programa: No ano em que se comemoram os 400 qnos da estreia da ópera de Claudio Monteverdi "La favola d'Orfeu", a OFB em co-produção com a UA e o TA, apresentam esta ópera burlesca, numa estreia da versão em português. "Orfeu nos Infernos" é uma sátira ao mito de Orfeu, com música de Jacques Offenbach (1819-1880), na qual surge o tema que tornou o compositor e esta ópera dignos de notoriedade internacional: o Can-Can. (...)

Eu gostei particularmente de ouvir (e ver) a Eurídice/Raquel Camarinha, o Cupido/Susana Ferreira e John Styx/Pedro Ferreira, mas muitos outros novos valores se revelam neste espectáculo.

Não é má ideia dar uma vista de olhos prévia a algumas gravações do mesma obra levada a cena pela Opéra Nacional de Lyon. Talvez aguce o apetite e, sendo evidente a diferença de meios, não me parece que a encenação que vi hoje fuja muito a este modelo. Alors là, vraiment, goutz moi ça, Offenbach c'est super!

Offenbach's opera "Orphée aux enfers"
Opéra national de Lyon 1997

Do III Acto - Natalie Dessay canta a ária "Ah! Quelle Triste Destinée"



(Ainda III Acto) Natalie Dessay and Laurent Naouri interpretam "Il m'a Semble sur mon Epaule (O dueto da Mosca)



IV Acto - Festejo do último galope infernal

20.4.07

17.4.07

Quelque chose en nous de Tennessee

... é a minha canção preferida do Johnny Hallyday. de preferência a solo. qualquer coisa cá dentro mexe...




A vous autres, hommes faibles et merveilleux
Qui mettez tant de grâce a vous retirer du jeu
Il faut qu'une main posée sur votre épaule
Vous pousse vers la vie, cette main tendre et légère

On a tous -Quelque chose en nous de Tennessee
Cette volonté de prolonger la nuit
Ce désir fou de vivre une autre vie
Ce rêve en nous avec ses mots à lui

Quelque chose de Tennessee
Cette force qui nous pousse vers l'infini
Y a peu d'amour avec tell'ment d'envie
Si peu d'amour avec tell'ment de bruit
Quelque chose en nous de Tennessee

Ainsi vivait Tennessee
Le cœur en fièvre et le corps démoli
Avec cette formidable envie de vie
Ce rêve en nous c'était son cri à lui

Quelque chose de Tennessee
Comme une étoile qui s'éteint dans la nuit
A l'heure où d'autres s'aiment à la folie
Sans un éclat de voix et sans un bruit
Sans un seul amour, sans un seul ami

Ainsi disparut Tennessee
A certaines heures de la nuit
Quand le cœur de la ville s'est endormi
Il flotte un sentiment comme une envie
Ce rêve en nous, avec ses mots à lui
Quelque chose de Tennessee
Oh oui Tennessee
Y a quelque chose en nous de Tennessee

12.4.07

Hoje, às 23h, no Mercado Negro

Chriss Sutherland, fundador dos Cerberus Shoal, banda indie de culto nos Estados Unidos, traz o seu novo projecto a solo em formato acústico.