I. Explicar às minhas filhas quem é a Teresa Salgueiro. Se é fadista? - não. É tipo a vocalista dos Deolinda? - não. Canta o quê? - Música portuguesa. (Vá, definam o estilo dos Madredeus a duas miúdas de 12 anos, não esquecendo de as motivar para o espectáculo que vão ver a seguir. Ah, elas gostam da Adele, mas também da Rhianna!). Ela canta MUITO bem, fez parte dos Madredeus - podem ouvir todos os CDs - e esse grupo teve imenso sucesso em todo o mundo, até no Japão! No Japão? - sim. E depois de vários anos a trabalhar juntos, decidiram separar-se. Desde há algum tempo, a Teresa Salgueiro tem projectos a solo.
Desconfiadas, foram ver o espectáculo. Primeira impressão: a sala está cheia de pessoas mais velhas, mesmo mais velhas do que eu! É um facto! E não percebo, juro que não percebo. Então agora os fãs dos Madredeus esqueceram ou rejeitam a vocalista! As músicas afinal eram tristes ou chatas, arrastavam-se qual filme de Manoel de Oliveira! Não percebo. A sala está cheia mas não há malta de 20/30 anos e a minha faixa etária também está mal representada. As miúdas têm razão: é só cabelos brancos!
Começa o espectáculo, ouve-se a primeira canção do novo álbum, "O Mistério". E só vos digo: a Teresa Salgueiro e a sua banda exige muito respeitinho. As minhas filhas perceberam o que é cantar irrepreensivelmente bem. Elas sabem, a voz que vem da garganta, o fôlego imenso, e parecer tão simples. E a presença em palco. Sempre contida, é certo. Mas a classe, senhores, a classe. Finalmente (mas não menos importante nestas idades), ela é bonita.
II. Agora eu. Não sei porquê, mas entro no Teatro e penso no Bernardo Sassetti. Vi-o tocar naquela sala. Mas não é isso. É ele todo, o músico e o homem. É a minha geração. Espero que a Teresa Salgueiro lhe dedique uma canção. Espero. Não sei porquê, parece-me bem. Ela não me fez a vontade, apesar de ter falado bastante sobre O Mistério. Há lá maior mistério que a morte! A verdade é que as canções são muito bonitas e a qualidade musical da banda, dos arranjos, a perfomance, é notável. Comovo-me às vezes. Continuo a pensar no Sassetti, enquanto sussuro beijos e pequenas atenções no ouvido das filhas. "Já viram que o contrabaixo está cortado?", "Ela parece uma odalisca, quando abre os braços e ondula as ancas!",....
As filhas vão-se enroscando à medida que as canções se sucedem. Mas não há canções de embalar. O ritmo é forte, o timbre poderoso, o silêncio desperta, há variações que nos fazem querer rodar na cadeira. Há espanto. Estava a ouvi-la e a vê-la e dei comigo a pensar nas minhas divas da América Latina, a postura séria, a voz que encarna uma causa. Teresa Salgueiro defende o conceito do mistério da vida, dos mistérios, fonte da nossa fragilidade e da nossa força. E a necessidade de manter a integridade do ser. Os cabelos compridos da Mercedes Sosa, da Lilla Downs. Um misticismo que-não-é-assim-tão discreto. Mas também ouço e vejo as minhas divas africanas e árabes, Magida El Roumi, Natasha Atlas, Fairouz, Om Lalthoumem. São algumas variações, a tónica musical, a contenção, os temas: a ausência do amado (ela poderia dizer habibi, em vez de meu amado, meu amor), os quatro elementos (a luz da manhã, a terra seca, o firmamento, oásis..., palavras que fixo). Há uma fusão de influências. O acordeão (Carisa Marcelino), a bateria e percussão (Rui Lobato), o contrabaixo (Óscar Daniel Torres) e a guitarra (André Filipe Santos) levam-nos numa viagem. Ouvimos tangos, ritmos tribais, danças do véu, trovas de ventos que passam e vão ficando, fados, toques jazzy, eu sei lá! Mas respiramos bem porque é tudo confusamente simples e harmonioso.
A alegria. Falta falar da alegria que vai crescendo. Eu acho que poderia ser maior ainda se os poemas tivessem sido renovados. Na obra da Teresa Salgueiro, ou neste álbum, isso não aconteceu. Comprei o CD e confirmo a impressão de que a escrita deve ter sido colectiva (como foi colectiva a composição musical). Os poemas não têm autor designado. A artista evoluiu, musicalmente surpreende. Mas as palavras, mesmo que inseridas noutras frases, são as mesmas. «Nas ondas do mar/na luz serena da chuva/eu sei. Aguardo as palavras/suspensas no silêncio/e vou». É belo mas é Madredeus e, naquela mesma voz, o verso belo parece gasto. Foi assim comigo.
De resto, só queria que ela tivesse feito uma pausa no seu imenso profissionalismo, no seu esquema impecável, e dissesse Bernardo Sassetti, o músico velado àquela mesma hora. É a nossa geração, Teresa Salgueiro.