6.5.07

Ute Lemper is not a vamp

Fotos MRF - Casa da Música - 4 de Maio

Eu vi um espectáculo sublime, executado por uma cantora-bailarina-performer divina, que começou com um murmúrio yiddish e acabou com um assobio jazzístico. Cantou Lili e isso bastar-me-ia. Pelo que tudo o mais foi soberba. Há quem consiga dar mais pormenores.
Eu vi uma bela mulher--- que não trai a idade que tem. Comentando fotos suas ---em capas de cds antigos, dizia, sorrindo, que era uma pena, mas não podia permanecer igual ao que era há vinte anos. O filho, com 18 meses, pela mão, ao colo. E que devíamos comprar o último álbum alive, alive. Falava de "Blood and Feathers: Live at the Cafe Carlyle" que não consegui encontrar à venda. Então ela suspirou: não sou uma superstar! Ute lemper!

E porque este artigo da jornalista Inês Nadais (Publico) reflecte bem a personalidade artística de Lemper e resume lindamente o espectáculo que trouxe a Portugal, transcrevo-o para aqui.

---Ute Lemper a salteadora do cabaré perdido

Passamos meia hora a falar de cabaré com Ute Lemper como se estivéssemos em Berlim, nos anos 20 (as montras de vidro ainda intactas, "yiddish" nas ruas, copos partidos no caminho para o próximo "whisky bar" e variedades à noite, com Friedrich Holländer e Kurt Weill: Hitler era só um holocausto ao fundo do túnel, o mundo estava a uns anos de estar perdido), e meia hora depois Ute Lemper diz, "stop the press", que "o cabaré é uma arte perdida". Passámos meia hora a falar de uma coisa que já não existe - e, no entanto, o cabaré só acaba quando ela acabar. "Isto é o que eu faço melhor. Durante muitos anos perdi tempo a dar passos para o lado, mas no final do dia é mesmo no cabaré que me sinto mais em casa", diz Ute Lemper (atende-nos o telefone em Nova Iorque, onde vive com o marido, o baterista Todd Turkisher, e os três filhos: já tinha acontecido antes, a reserva moral da Alemanha em geral e do cabaré berlinense em particular estar na América, do outro lado do mundo ocidental). Faria sentido regressar, admite (mas isso era se ela fosse pragmática): "Passo a vida na Europa, 70 por cento dos meus concertos são aí". Estamos nesses 70 por cento: hoje (Casa da Música, Porto), amanhã (Teatro das Figuras, Faro) e depois (Centro Cultural de Belém, Lisboa), Ute Lemper faz de Ute Lemper aqui.
É sempre isso que acontece: Ute Lemper a fazer de Ute Lemper (e pode acontecer com Friedrich Holländer e Kurt Weill, com Edith Piaf e Jacques Brel, com Stephen Sondheim e George Gershwin, com Tom Waits e Scott Walker). A diferença é que, em "Angels over Berlin and the World", o espectáculo que traz esta semana a Portugal, há alturas em que ela não está a fazer de Ute Lemper, está a ser Ute Lemper. Compôs um álbum, e esse álbum é mesmo ela.
"As minhas canções são muito menos teatrais e muito mais introvertidas do que as canções do Weill ou da Piaf que me habituei a cantar - são canções mais poéticas em que as palavras falam por si, ao ponto de quase dispensarem a interpretação. Mas nos meus espectáculos continuo a fazer muito esse teatro", explica. O álbum não está pronto para a digressão, apesar de ter sido gravado há ano e meio ("Acabámos as gravações cinco dias antes de o meu bebé nascer, em Novembro de 2005. Durante um ano, esqueci-me que o álbum existia. Em Dezembro de 2006, misturámo-lo, finalmente. Foi óptimo ganhar distância. Mas é pena o álbum não estar pronto para estes concertos. As questões legais estão a demorar uma eternidade... Espero que em Setembro já esteja à venda"). Mas há canções do álbum que estão prontas. "São mesmo minhas, estas canções: são sobre a minha vida, sobre os meus amigos, sobre o meu universo. Mas, além de biográficas, são ligeiramente sociopolíticas: neste álbum eu olho de frente para o mundo. E o mundo mudou imenso: há pessoas diferentes, há deuses diferentes, há guerras diferentes (e há uma superpotência diferente, a mandar sozinha). Acho que fiz um álbum épico para o mundo dos nossos dias", conclui.
Não acha que este mundo seja pior ou melhor do que os anteriores - só acha que é mais indecifrável e, por isso, mais intransponível. "É um mundo muito pouco transparente. Dantes conseguíamos ler nas entrelinhas das coisas, agora não: as guerras por trás desta guerra são difíceis de perceber. Não sabemos exactamente quem puxa os cordelinhos deste teatro de marionetas".

---Fantasmas

No teatro dela, há coisas de vários mundos - deste mundo que ela não consegue processar e dos outros que não sobreviveram ao século XX -, e essas canções épicas que Ute Lemper compôs para os nossos dias coabitam com os fantasmas de Natais passados. "Neste espectáculo faço uma viagem por repertórios de várias épocas diferentes. Há uma homenagem a Jacques Brel, com canções muito pouco conhecidas dele, novas composições minhas que nunca cantei em Portugal, "standards" do cabaré berlinense de Brecht e Weill e um núcleo de canções em yiddish".
Nós tínhamos dito que havia fantasmas, esqueletos no armário da Alemanha do século XX (Ute Lemper nasceu em Münster, em 1963), e há: "Procurei materiais da cultura berlinense do início do século e a maioria dos compositores e dos letristas dessa época era de origem judaica. Quis fazer uma homenagem àqueles que tiveram de abandonar a Alemanha - e àqueles que ficaram para ser assassinados pelos nazis. Como alemã da segunda geração do pós-guerra - e sobretudo como alemã com uma identidade muito ambivalente -, senti obrigação de prestar homenagem a uma cultura que foi tão cruelmente violada", sublinha Lemper. Não teve de aprender a falar "yiddish": "O meu marido é judeu, os meus filhos são metade judeus, e sempre ouvi gente a falar "yiddish", ou pelo menos com sotaque "yiddish", à minha volta. Adoro esse sotaque. É quase como um dialecto do alemão - mas com muito mais paixão do que o alemão".
Há relações de consanguinidade entre os protagonistas dessas canções de judeus da Europa Central e os protagonistas das outras canções que Ute Lemper convoca em "Angels over Berlin and the World" (incluindo os protagonistas da "chanson", outra coisa morta: "Foi uma das coisas mais bonitas do século XX e não sobreviveu até este milénio", lamenta): "Todas estas histórias são sobre anti-heróis, sobreviventes, pessoas que riem por último". Mas também sobre um mundo de que, de certa forma, Lemper desertou: viveu em Münster, Colónia, Viena, Berlim, Paris e Londres, fixou-se em Nova Iorque. "Regressar a Berlim é uma possibilidade que estou sempre a colocar - mas adoro a cidade. Aqui desaparece-se realmente na massa. Pessoas de todos os lados instalam-se aqui, com as suas histórias, e coabitam realmente na mesma rua, no mesmo prédio, na mesma casa. Na Alemanha é tudo tão distintamente alemão. Mesmo Berlim, que é uma cidade à parte, e que é a minha cidade alemã favorita. Escrevi uma música sobre Berlim, está no álbum novo: chama-se "Ghosts of Berlin"".
Não há cidade europeia mais assombrada (eles continuam a contar os seus mortos, no centro da cidade, e essa memória esmaga 20 mil metros quadrados de terra de ninguém entre a Porta de Brandenburgo e a Potsdammer Platz).
O cabaré berlinense, diz Ute Lemper, é uma das baixas desse tempestuoso século XX alemão: "Em Portugal há novos fadistas, no México há novos cantores de ranchera - é bom, a roda continua a girar. Na Alemanha não. Não há muitos continuadores da tradição do cabaré, e não creio que os alemães tenham saudades disso. A Alemanha é muito influenciada pelos EUA, pelo lixo, pelos "reality shows" que estão a educar uma geração inteira, e o cabaré é uma arte perdida. Há cantores, e continuará a haver - mas a fazer carreiras de nicho. A ideologia alemã é toda sobre andar para a frente, andar para a frente, andar para a frente, e o cabaré ficou para trás". Ela imagina-se a fazer cabaré aos 60 anos. "O que faço é intemporal. Olho para o espelho e vejo que não sou a mesma de há 20 anos, mas envelhecer é uma coisa que está muito longe. Tenho 43 anos, sinto-me tão atlética como sempre fui e está tudo bem, são só mais umas rugas". Aqui na terra, para todos os efeitos (com 20, com 60, ou com 43), ela continua a ser a última diva do cabaré alemão.